Sobre Luiz Gama

LUIZ GAMA: O ADVOGADO EM PROL DAS CAUSAS DA LIBERDADE

“Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no Ipiranga, à Rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu como sim­ples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime”

(Luiz Gama, em Carta a Lúcio de Mendonça – 1868)

Luiz Gonzaga Pinto da Gama foi um poeta, jornalista e advogado nascido em 1830 na Bahia e é considerado uma das figuras pioneiras nos movimentos abolicionista e republicano no Brasil. Filho de Luiza Mahin, africana livre que trabalhava nas ruas da cidade de Salvador, foi vendido como escravizado pelo pai – cujo nome jamais foi mencionado – aos 10 anos de idade, para sanar algumas de suas dívidas. Sua liberdade é conquistada anos mais tarde, quando Luiz Gama consegue provar em juízo a condição ilegal de sua situação de escravizado.   

Com uma trajetória política e intelectual muito diferente de seus contemporâneos, Luiz Gama foi um dos poucos intelectuais negros de reconhecimento público da época e o único a ter passado pela experiência de escravidão. Sua história envolve o uso de suas capacidades autodidatas para trocar a condição de escravizado analfabeto pela de cidadão e homem livre. Lendo e frequentando ambientes acadêmicos e jurídicos da época, passou a acumular vasto conhecimento sobre a legislação e jurisprudência vigente, reconhecendo no direito um campo importante de disputa política em prol da justiça social. 

Com o tempo e a experiência no tema, Luiz Gama vai se tornar o advogado das “causas de liberdade”, atuando gratuitamente na libertação de mais de 500 escravizados da época em menos de 15 anos de carreira. Em torno de si e sua causa, o advogado vai construir uma extensa rede de solidariedade que participa judicial e financeiramente dos processos de alforriamento. Ainda, Luiz Gama passa a se relacionar com os mais conhecidos nomes da advocacia paulista, com os quais vai dividir a reputação firme entre os melhores jurisconsultos da província, especialmente pela sua erudição, excelente capacidade retórica e gosto pela hermenêutica. 

Em sua atividade jornalística, para além da literatura – campo em que Luiz Gama é a primeira voz negra a lançar um livro no Brasil -, destacavam-se as discussões de caráter jurídico. Luiz Gama frequentemente corrigia juízes e magistrados consagrados ou transcrevia trechos de suas sentenças a fim de criticá-los ou constrangê-los. É pioneiro na discussão judicial em torno da igualdade racial e mobiliza os recursos disponíveis, jurídicos ou não, para convencimento dos magistrados e da sociedade das questões que lhe são caras. Ainda que o autor não restringisse sua capacidade argumentativa à legalidade das situações, vai fazer largo uso desta ferramenta como meio de denúncia das violações de direitos que ocorriam cotidianamente. 

Contudo, apesar de tamanha bagagem intelectual, do uso atento e estratégico das ferramentas jurídicas e dos feitos inéditos à época, o nome de Luiz Gama é pouco citado nas salas de aula dos cursos de direito, em especial do Largo São Francisco. Somente em 2015, o jurista foi reconhecido enquanto advogado pela OAB. Essa marginalização histórica de seu pensamento na academia e no mundo jurídico como um todo revela a tradição burguesa e racista que persiste nesses espaços ainda na atualidade. E é na contramão dessa corrente que Luiz Gama foi escolhido como patrono da nossa Clínica de Direitos Humanos, no ano de sua criação em 2009. Um dos objetivos da escolha, portanto, é homenagear seus feitos e dar visibilidade para a figura histórica de Luiz Gama.

É de Luiz Gama a famosa frase: “Não possuía pergaminhos porque a inteligência repele diplomas como Deus repele a escravidão”. Em virtude da sua trajetória intelectual diferenciada, o autor vai tecer duras críticas ao debate e às formalidades academicistas, apartados da realidade e das questões da maior parte da população. Assim como pautado pela teoria clínica de ensino em direito, Luiz Gama recusa o ambiente acadêmico ensimesmado e pouco conectado com as dinâmicas sociais da atuação jurídica. 

Além disso, percebemos que o método de ensino clínico, baseado na aliança entre teoria e prática e, em especial na América Latina, na luta contra injustiças sociais, liga-se intimamente à trajetória de Luiz Gama. O pensador não distinguia sua atividade intelectual de sua atividade profissional, tampouco restringia-se aos aspectos meramente jurídicos das questões. 

É também atribuída a Luiz Gama a defesa dos escravizados que seriam linchados publicamente por matarem os seus senhores: o escravo que mata seu senhor age em legítima defesa. A tese é simbólica da essência política do pensamento de Luiz Gama, transgressora dos ditames jurídicos tradicionais e que busca utilizar os mecanismos disponíveis para propor teses inovadoras. Nesse sentido, Luiz Gama é também referência prática de atuação política e jurídica, que nos ajuda ainda hoje a pensar atuações que observem o direito como ferramenta transformadora, o que buscamos por meio da interdisciplinaridade e de uma visão e operacionalização crítica do direito.

Essa visão crítica se reflete na descrição que fez de uma de suas principais atuações: “promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas”. Diferentemente da visão jurídica tradicional, Luiz Gama reconhecia as pessoas escravizadas como cidadãs e, ainda, via nelas o papel de protagonistas de um movimento abolicionista popular, que se efetivasse pela rebelião.  Contudo, a abolição, a qual Luiz Gama não chegou a ver, não foi realizada de maneira inclusiva, tampouco reparadora dos prejuízos sociais impostos ao povo negro. O racismo, incorporado em todas as instituições, continuou violentando em diversos níveis essa população, seja por meio da exclusão de espaços e de relações de poder, da falta de políticas públicas de saúde, educação e outras, e da intensa criminalização e genocídio de corpos negros. Assim, até hoje perpetuam-se violências originárias do processo de escravização. 

Nesse cenário, aqueles que haviam sido escravizados e então passaram a ser considerados livres continuaram enfrentando diversas barreiras e violências, que impediram a verdadeira efetivação de seus direitos e reparação histórica. Isso se reflete no perfil da população em situação de rua, grupo sobre o qual se debruça o trabalho da Clínica desde sua criação. O Censo da População de Rua de 2019 do município de São Paulo indica que quase 70% dessa população se considera negra (parda ou preta). Entendemos, portanto, que para pensar os problemas da população em situação de rua é necessário considerar como se dá a estruturação racista de nossa sociedade, que culmina em inúmeras violências e vulnerabilidades sobre esses corpos. 

Em combate à tradição do Largo São Francisco de encarar a população de rua que frequenta o espaço enquanto ameaça, a nossa Clínica de Direitos Humanos homenageia e se inspira em Luiz Gama por meio da prática cotidiana da escuta, ensino e mobilização de estratégias jurídicas e não jurídicas em favor da autonomia e efetivação de direitos daqueles que se encontram mais afastados da condição de cidadania.

Para conhecer mais sobre Luiz Gama, recomendamos: 

Instituto Luiz Gama: http://www.institutoluizgama.org.br/index.php

Textos e livros de Luiz Gama:

Primeiras Trovas Burlescas de Getulino – Luiz Gama: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000101.pdf

Textos e livros sobre Luiz Gama:

Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça – Ligia Fonseca Ferreira

Um retrato: Luiz Gama, defensor dos escravos e do direito – Ligia Fonseca Ferreira (capítulo do livro “Os Juristas na Formação do Estado-Nação Brasileiro)

O passado do presente: Luiz Gama, racismo e direitos – Raphael Pires do Amaral:

https://www.migalhas.com.br/depeso/329244/o-passado-do-presente-luiz-gama-racismo-e-direitos

Luiz Gama, Advogado Emérito – Fábio Konder Comparato:

http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/comparato/comparato_luiz_gama_advogado_emerito.pdf

Podcasts e vídeos:

Tempo e Historia – Luiz Gama (17/01/16):

Literatura Fundamental 62 – Luiz Gama – Ligia Fonseca Ferreira: 

Repertório 451 MHz: Luiz Gama no campo de batalha: https://www.quatrocincoum.com.br/br/podcasts/r/luiz-gama-no-campo-de-batalha#.Xv9kWH86Gns.twitter